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Displaying Category 'Evangelho de Natal'

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dez

Paz! Onde estás?

Posted by Arautos do Evangelho
Filed under Evangelho de Natal
 
Evangelho

Quando os anjos se retiraram deles para o Céu, os pastores diziam entre si: “Vamos até Belém e vejamos o que é que lá aconteceu e o que é que o Senhor nos manifestou”. 16 Foram a toda pressa, e encontraram Maria, José e o Menino deitado na manjedoura. 17 Vendo isto, contaram o que lhes tinha sido dito acerca deste Menino. 18 E todos os que ouviram, se admiraram das coisas que os pastores lhes diziam. 19 Maria conservava todas estas coisas, conferindo-as no seu coração. 20 Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham ouvido e visto, conforme lhes tinha sido dito.” (Lc 2, 15-20).

Nascendo numa época corroída por misérias morais e sociais, Jesus veio renovar o mundo. E os primeiros anunciadores da boa nova foram os humildes pastores de Belém.

MONS JOAO CLA_3.jpgMons. João Clá Dias, E.P.

I – As conseqüências do pecado original

Ao lermos o Gênesis, entristecenos a história do primeiro pecado do homem, sobretudo ao nos darmos conta de que ali surgiu a fonte da progressiva brutalidade que se espalhou sobre a Terra.

No início, o equilíbrio moral de nossos primeiros pais, Adão e Eva, era vigorosamente forte e robusto, pois eles “foram constituídos em um estado ‘de santidade original’ […] O homem estava intacto e ordenado em todo seu ser, porque livre da tríplice concupiscência que o submete aos prazeres dos sentidos, à cobiça dos bens terrenos e à auto-afirmação contra os imperativos da razão” 1.

Para romper essa barreira e ser lançada a humanidade num maremagno de desordens, de fato, bastou um só pecado: o original.

O pecado leva à idolatria

“A partir do primeiro pecado, uma verdadeira ‘invasão’ do pecado inunda o mundo: o fratricídio cometido por Caim contra Abel; a corrupção universal em decorrência do pecado” 2. Daí o mal ter se difundido por toda parte numa crescente voracidade, a ponto de conferir realidade à afirmação do poeta Plautus, quando este fez uma descrição do relacionamento entre os seres humanos, na sociedade de seus dias: “Homo homini lupus” 3.

Não tardou muito o homem em substituir o verdadeiro Deus – seu companheiro de conversa e passeio das tardes no Paraíso – por deuses falsos, ídolos materiais e sem vida.

Foi com fundamento que Horácio, pela voz de um desses deuses, Príapo (deus dPresepio 12.....jpga masculinidade e da fertilidade), ridicularizou essa apostasia: “Tempos atrás, eu era o tronco de uma figueira selvagem, madeira imprestável, quando o marceneiro, hesitando sobre o que fazer de mim, se um banco ou um Príapo, preferiu que eu me tornasse o deus” 4.

Os homens querem se fazer adorar

A idolatria não exigiu para si somente figuras materiais, mas esse delírio se estendeu ao endeusamento de certas personalidades. Governantes inúmeros fizeram-se adorar por seus súditos. O título de Augusto, conferido pelo Senado Romano ao Imperador Otávio, tornou-se uma amostra do desequilíbrio de espírito daqueles tempos.

Digna é de nota a proskynesis (o ósculo da poeira do chão pelos súditos, diante do soberano). Um exemplo clamoroso nessa linha deu-se com Alexandre Magno que “com a ‘proskynesis’ […] exigia o reconhecimento de que oficialmente, em sua qualidade de rei […], ele não era mais um homem, mas sim, um deus. Em outras palavras, quando Alexandre exigiu que gregos e macedônios se prostrassem a seus pés e osculassem a poeira diante dele, queria que o reconhecessem como deus” 5.

Por trás dessas práticas encontrava- se, evidentemente, a idolatria ao próprio Satanás, denunciada por São Paulo em sua primeira Epístola aos Coríntios: “Considerai Israel segundo a carne: não entram em comunhão com o altar os que comem as vítimas? Que quero afirmar com isto? Que a carne sacrificada aos ídolos ou o próprio ídolo são alguma coisa? Não! As coisas que os pagãos sacrificam, sacrificam-nas a demônios e não a Deus. E eu não quero que tenhais comunhão com os demônios.

Não podeis beber ao mesmo tempo o cálice do Senhor e o cálice dos demônios.

Não podeis participar ao mesmo tempo da mesa do Senhor e da mesa dos demônios” (1 Cor 10, 18-21).

Infame humilhação das mulheres

E como não poderia deixar de ser, todo esse culto era acompanhado de abjetas depravações, como por exemplo a “prostituição sagrada”, perpetrada no interior dos templos babilônicos e assírios, conforme nos relata o próprio Heródoto 6. Esse mesmo costume era comum e corrente nos templos de Afrodite e de Vênus, na Grécia, como também nos de Astarte, na Síria.

E qual a fonte “vocacional” dessas “sacerdotisas”? Basta percorrer os números 181 e 182 do conhecido “Código de Hamurábi” (aproximadamente 1793 a 1750 a.C.), tão exaltado por certos historiadores, para conhecermos a regulamentação de como deviam os paiADORA?AO REIS MAGOS..............jpgs proceder para doarem suas filhas aos templos. Ademais, relata Heródoto que, em Babilônia, todas as mulheres nativas, sem qualquer exceção, pelo menos uma vez na vida deviam passar por essa infame humilhação no templo de Melita 7.

Esse horroroso costume era rigorosamente observado também na ilha de Chipre. O mesmo se dava na Fenícia, entre os adoradores de Baal; idem na Frígia, no culto a Cibele e Átis. E não nos esqueçamos de que se atribuíam, aos deuses do Olimpo, não poucos roubos, parricídios, raptos, incestos, infanticídios, etc.

Horrores no trato dispensado às crianças

Se injusto e brutal era o trato dispensado às mulheres, melhor não era o dado às crianças. Heródoto nos faz chegar ao conhecimento os horrores nessa matéria, como por exemplo ter sido prática legal na Grécia, permitida aos tutores das crianças, a pedofilia, que posteriormente foi copiada pela Pérsia 8.

Um famoso historiador francês assim nos narra como deveriam ser consideradas as crianças que nascessem defeituosas: “O Estado tinha o direito de não tolerar que seus cidadãos fossem disformes ou mal constituídos. Por isso ele ordenava ao pai, ao qual nascesse um filho nessa situação, que o fizesse morrer. Essa lei se encontrava nos antigos códigos de Esparta e de Roma” 9.

Falta de amor na família

E quanto à constituição familiar “os adultérios e divórcios estavam na ordem do dia; havia mulheres que tinham se casado vinte vezes” 10. O que evidentemente conduzia a um trato social despótico e injusto. “A falta de amor na família levou à desumanidade para com os escravos, os pobres e os trabalhadores” 11.

As trevas do pecado invadiam todos os povos

Seria um não mais terminar se procurássemos nos aprofundar na recordação do ambiente social e moral dos últimos tempos da Antiguidade.

Para formarmos uma idéia de síntese desse período histórico, basta correr os olhos sobre o primeiro capítulo da Epístola aos Romanos: “Deus os entregou a paixões degradantes […] E é assim que fazem o que não devem. Estão repletos de toda espécie de injustiça, perversidade, ambição, maldade; cheios de inveja, homicídios, discórdia, falsidade, malícia; são difamadores, maldizentes, orgulhosos, arrogantes, engenhosos para o mal, rebeldadora?ao dos pastores.jpges para com os pais, estúpidos, desleais, inclementes, impiedosos” (Rm 1, 26.28-31).

Essa era a terrível noite que, como um negro manto de drama, sofrimento e dor, envolvia a humanidade daqueles tempos como um dos frutos do pecado original. Entre o próprio povo eleito, raros escapavam das influências da ambição dos fariseus hipócritas, que iam ao Templo por pura vanglória e exibicionismo, em busca de honras. As trevas do pecado envolviam todos os povos, e o domínio de Satanás se estendia por toda a Terra.

Como reparar tanto horror? Como de certa forma restabelecer a antiga ordem e reabrirem-se as portas do Céu? Nesse caos tão generalizado, onde encontrar, na face da Terra, criaturas humanas que dessem a Deus um louvor puro e inocente?

II – O Menino que reverteu a História

Entremos numa certa gruta e ali veremos um Menino adorado por sua Mãe Santíssima e São José, reunidos em família, oferecendo mais glória a Deus do que toda a humanidade idólatra, e até mesmo mais do que os próprios anjos do Céu em sua totalidade.

Já em seu nascimento, numa singela manjedoura, aquele Divino Infante reparava os delírios de glória egoísta sofregamente procurada pelos pecadores.

Ele se encarnava para fazer a vontade do Pai e, assim, dar-nos o perfeitíssimo exemplo de vida.

Nenhum pensamento, desejo, palavra ou ação surgida de sua alma divinamente santa terá outro fim que não seja o de glorificar o Pai, a quem tudo consagrou desde o primeiro instante.

Não tardarão muitos séculos, depois daquele natal, para os altares dos falsos deuses serem arrasados, os ídolos quebrados, os templos pagãos destruídos – ou convertidos em santuários – e os próprios demônios se calarem. Sim, aquele Menino nascido numa gruta reverterá o trabalho realizado por Satanás durante milênios, e a Roma pagã será a sede do Cristianismo; transformada na Cidade Eterna, dentro de suas muralhas, sobre uma pedra inabalável, se estabelecerá até o fim dos tempos uma infalível cátedra da moral e da verdade.

Os pastores são convidados pelos Anjos

Mas, por outro lado, onde encontrariam os anjos, homens dignos de serem convidados para adorar o Menino? Na própria Belém, o berço de Isaí (1 Sm 16, 1) e de seu filho Davi, o humilde e jovem pastor “louro e de formosos olhos” (1 Sm 16, ADORA?AO PASTORES.............jpg12). Nos campos daquelas regiões, escolheram os anjos os destinatários do grande anúncio, pessoas pertencentes à mesma condição social do Rei e Profeta: os pastores de ovelhas. Assim, dois cortesãos do mais nobre sangue – Maria e José -, junto com os pastores de condição humilde e a própria Corte Celeste constituiriam os adoradores do Menino- Deus recém-nascido. Do Templo, nenhum representante.

Os escribas e fariseus desprezavam aquela classe de homens que, dia e noite, no verão ou no inverno, guardavam os rebanhos naquelas pastagens de Belém. Pelo seu teor de vida, os pastores não se enquadravam nas minuciosas práticas e abluções religiosas dos cerimoniais farisaicos.

Os terrenos por eles ocupados não eram suficientemente irrigados e, por isso, não lhes assistia um escrupuloso asseio. Ademais, a instrução era por eles acolhida diretamente na própria natureza que não lhes ensinava o uso de vasilhas, a escolha dos alimentos puros etc. Formavam eles uma comunidade à margem da sociedade, que vivia do pasto e no pasto, portanto um povo da terra, totalmente desprezado pelos fariseus. Além disso, eram excluídos do normal procedimento dos tribunais, sendo considerados inválidos seus testemunhos em juízo. Paradoxalmente, os excluídos dos pleitos farisaicos são agora convidados, pelos anjos do Supremo Juiz, a penetrar na corte de um príncipe herdeiro do trono de Davi.

 

III – A adoração dos pastores
 
15 Quando os anjos se retiraram deles para o Céu, os pastores diziam entre si: ‘Vamos até Belém e vejamos o que é que lá aconteceu e o que é que o Senhor nos manifestou’.

A flexibilidade de alma daqueles pastores era plena, submissa e toda feita de prontidão. O anjo lhes dissera para não temerem (cf. Lc 2, 10) e não consta nesse relato de Lucas que tenham passado por algum espanto ao longo do contato pastores.jpgcom aqueles puros espíritos.

Ora, sabemos pela História o quanto os judeus se amedrontavam com as aparições angélicas, julgando que a morte com certeza se lhes seguiria (cf. Jz 6, 22-23; Jz 13, 20-22; Tb 12, 16-17). Mas esses pastores, apesar de homens de pouquíssimo conhecimento, intuíram rapidamente que, por fim, nascera o Messias.

Sem conhecer as amplas e profundas explicações doutrinárias dos fariseus, eles como todo e qualquer judeu, sabiam da promessa feita por Deus e anunciada pelos profetas aos antigos sobre o futuro aparecimento de um Salvador. Não seria quiçá esse o tema de suas conversas durante as noites de pastoreio? Restou-nos apenas uma síntese das palavras do anjo a eles. Entretanto não será exagerado crer que ele lhes tenha esclarecido qual deveria ser o lugar e o caminho de acesso à gruta, tanto mais que lhes indicou os sinais distintivos: “Encontrareis um Menino envolto em panos e posto no Presépio” (Lc 2, 12).

As grutas da região lhes deviam ser muito familiares, pois eram os locais de refúgio onde buscavam proteção contra as intempéries. Tampouco se pode descartar a hipótese de ter havido antecedentes de partos ocorridos em circunstâncias análogas às do Natal. O certo é que em nenhum momento lhes passa pela alma a menor dúvida e, por isso, comentam entre si, em meio a muita alegria, o fato narrado pelo anjo, e convictamente concluem e decidem empreender a caminhada rumo ao “que o Senhor nos manifestou” (v. 15). 

Receberam com fervor a boa nova
 
16 Foram a toda pressa, e encontraram Maria, José e o Menino deitado na manjedoura.

O amor não admite lentidão. A pressa dos pastores comprova o grande fervor com que receberam a boa nova. Como não conheciam o emaranhado conceitual dos fariseus, não se levantou em suas almas a menor objeção sobre a realidade do Messias que se lhes manifestava diante de todos e de cada um. Trinta e poucos anos mais tarde, a cega doutrina dos escribas e fariseus se uniria aos conceitos dos saduceus e herodianos – sem excluir os do próprio Sinédrio – para se opor ao senso comum e sobrenatural dos humildes de espírito e assim, com entranhado ódio, empregar todos os recursos com vistas à condenação do “Salvador, que é Cristo e Senhor, [nascido] na cidade de Davi” (v. 11).

Ali na gruta, naquele momento, estavam presentes o Pai Eterno e o Divino Espírito Santo, que viam naquele tenro, delicado e ao mesmo tempo grandioso Menino, a realização de um plano idealizado desde todo o sempre: “Tu és meu filho muito amado, em quem coloco todas as minhas complacências” (cf. Lc 4, 22 e Mc 1, 11). Como também Maria Santíssima, que através de seus altíssimos dons, de maneira inigualável penetrava os mistérios daquele Nascimento. José a acompanhava muito de perto. Abismados ambos pela incomensurável humildade de Deus em fazer- se homem –  à diferença da soberba dos demônios -, concentravam-se para adorar o Divino Infante.

Foi-lhes concedido um dom de fé flexível e obediente

Lá chegam agora também os pastores, em simplicidade e pobreza, atraídos e amados por Deus devido a seu espírito de obediência, e por serem contemplativos. Não era a pobreza material que os tornava diletos de Deus, pois pobres os havia em situação ainda mais deficiente e em maior número. Ademais, não podemos nos esquecer de que essa não era a condição social dos Reis Magos, que paralelamente estavam se pondo a caminho para adorar o Divino Infante.

Por outro lado, seria outro erro querer atribuir ao portentoso milagre da aparição dos anjos, durante a noite, o fator decisivo para a crença daqueles homens toscos e talvez iletrados.

Quão maiores e incontáveis seriam os milagres operados por aquele Menino em sua vida pública! Entretanto, muitos judeus não creram.

O fator decisivo foi um especial dom de fé que lhes foi concedido.

A Teologia nos ensina que há uma fé que se poderia denominar puramente intelectual: a pessoa crê em Deus, mas chega a odiá-Lo e temê- Lo como fazem os demônios e os precitos. Há, ainda, os que crêem, mas não traduzem em obras sua fé.

Os fatos, como nos são narrados por Lucas, fazem-nos concluir que os pastores possuíam uma fé flexível e obediente, colocando em prática tudo aquilo em que acreditaram. Sem perda de tempo, submeteram todo o seu entendimento e vontade ao que lhes anunciou o sobrenatural.

É naquela noite que, diante do Presépio, encontramos os primeiros cristãos adorando a Cristo, o Absoluto abnegado, despido das manifestações da glória que Lhe é devida. Os pastores, ao serem capazes de adorá-Lo na manjedoura, não teriam dificuldade de fazê-lo no Calvário, tal como Maria o fez de modo tão sublime.

Nós também, nos dias atuais, temos o nosso presépio. O mesmo Unigênito Filho de Deus, reclinado sobre as palhas no interior da gruta em Belém, estNacimiento San Gin?s 007..............jpgá presente debaixo das Espécies Eucarísticas. Será que igualmente nos movemos “apressadamente” em busca do Salvador, como o fizeram os pastores?

 

Proclamaram maravilhas de que tinham sido testemunhas
 
17 Vendo isto, contaram o que lhes tinha sido dito acerca deste Menino.

O bem é de si eminentemente difusivo, e por isso, os pastores, de adoradores transformam-se em arautos das maravilhas contempladas por eles, antecedendo de muito os apóstolos e até mesmo o Precursor, João Batista, em suas missões.

Esse inesquecível Natal, pela mesma razão, fará cantar o coração dos pregadores, santos e Doutores: “Nós nos reunimos para admirar o aniquilamento do Verbo e gozarmos do piedoso espetáculo de ver como Deus desce para nos levantar, se rebaixa para fazer-nos crescer, e se empobrece para repartir-nos seus tesouros” 12 – afirma Bossuet.

Também São Boaventura proclama as maravilhas da graça operadas no Natal: “Para curar, Deus teve de unir-se à natureza humana, sem exceção de nenhuma parte, pois ela toda estava enferma. Diz-se que se ‘encarnou’ por ser a carne o que é mais enfermo e para indicar melhor a humilhação de Deus” 13.

E São Tomás assim explica o nascimento d’Aquele que é eterno: “Podese afirmar que Cristo nasceu duas vezes, segundo seus dois nascimentos; porque assim como se diz que corre duas vezes o que corre em dois momentos, assim também se pode dizer que nasce duas vezes o que nasce uma vez na eternidade e outra no tempo; porque a eternidade e o tempo diferem muito mais que dois momentos, ainda que um e outro designem una medida de duração” 14.

18 E todos os que ouviram, se admiraram das coisas que os pastores lhes diziam.

Após ter sido a própria Virgem Santíssima a primeira anunciadora da Boa Nova junto à sua prima Santa Isabel, agora os pastores movem-se para proclamar as maravilhas das quais tinham sido testemunhas.

A aparição do anjo e sua mensagem, a multidão de outros puros espíritos entoando cânticos celestiais, a constatação da realidade dos fatos na própria gruta, ao encontrarem Maria, José e o Menino, devem ter sido acontecimentos que arrebatavam a todos quantos deles tomavam conhecimento.

Tanto mais que provavelmente os pastores deviam estar tomados pelo sopro do Espírito Santo e iluminados em sua Nacimiento San Ginés 019_Cmissão. 

Maria conferia tudo o que acontecia no seu coração
 
19 Maria conservava todas estas coisas, conferindo-as no seu coração.

A propósito da afirmação feita por Lucas nesse versículo, ouçamos o que nos comenta Maldonado: “Observava, sim, como creio, todas as coisas, não como se desconhecesse o mistério delas, mas vendo com gozo como se confirmava com novos prodígios e pelo testemunho daqueles pastores, o que ela tinha conhecido antes, pelo anjo Gabriel. Este é o significado das palavras do evangelista, quando ele diz: Ela as conferia em seu coração; ou seja, comparava estas coisas com as que haviam precedido, via a coincidência de todas elas, para confirmar a fé neste mistério, como diz Eutímio. […] Segundo São Beda, Maria comparava as coisas que aconteciam com as palavras das antigas profecias:

‘Como lia as Sagradas Escrituras e conhecia muito bem os profetas, comparava consigo o que ia acontecendo acerca do Senhor, com o que d’Ele mesmo via escrito pelos profetas; e conferindo ambas as coisas, via que coincidiam admiravelmente, com uma luz comparável à dos próprios Querubins.

Havia dito Gabriel: Eis que conceberás e darás à luz um filho. E antes Isaías havia predito: Eis que uma virgem conceberá e dará à luz um filho. Havia profetizado Miquéias (4-8) que viria o Senhor à filha de Sion, na Torre do Rebanho, e então voltaria o antigo império. E dizem agora os pastores que lhes apareceram milícias da cidade celestial, na Torre do Rebanho, cantando a vinda do Messias. Maria havia lido (Is 1, 3) que o boi conheceu seu dono e o asno, o presépio de seu senhor; e via o Filho de Deus dar vagidos no presépio, vindo para salvar os homens e animais. E em todas e em cada uma dessas coisas comparava o que havia lido, com o que ouvia e via’.

Diz em seu coração para indicar que guardou tudo em seu interior, sem revelar a ninguém. Exemplo admirável de humildade e modéstia virginal, como nota Santo Ambrósio: ‘Aprendamos a castidade da Virgem em todas as coisas, a qual, não menos recatada em seus lábios que em sua carne, conferia em seu coração esses mistérios divinos’.
A mesma coisa comentou São Bernardo.” 15. 

Maternal acolhida
 
20 Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham ouvido e visto, conforme lhes tinha sido dito.

Não pode deixar de ser que a Santíssima Virgem os tivesse acolhido com maternal afeto e bondade.

Se os anjos condescenderam em lhes aparecer, tal seria que Maria não completasse, com sua nota de Rainha e Mãe, a missão de seus celestiais súditos, acentuando nas almas daqueles homens simples, mas cheios de fé, as graças que Deus lhes concedera.

Deveriam eles retomar os cuidados dos respectivos rebanhos, mas tudo leva a crer que não lhes foi fácil cumprir, de imediato, com seus deveres de ofício. Percebe-se, pela manifestação piedosa de sua alegria, o quanto estavam tomados por graças superabundantes e místicas.

IV – Considerações finais

Os anjos cantam e proclamam a instituição do Reino de Cristo que nasce na gruta em Belém. A manifestação desse Reino constitui a glória reparadora, e os que o dão a conhecer glorificam-no, assim como ao próprio Deus e Sumo Bem.
O adorável Menino nasceu para tornar conhecido o Pai entre os homens e, assim, poder d’Ele receber a devida glória: “Glorifiquei-Te sobre a terra; acabei a obra que me deste a fazer” (Jo 17, 4).

Ali também, sob certo ponto de vista, com o nascimento de seu Fundador, nasce a Santa Igreja, como afirma Santo Ambrósio: “Vede as origens da Igreja nascente” 16. Uma nova luz brilhou sobre a terra: “Este povo, que jazia nas trevas, viu uma grande luz, e uma luz levantou-se para os que jaziam na sombra da morte” (Mt 4, 16).

Viverá o mundo de hoje sob os influxos dessas graças, ou terá dado as costas a esse incomensurável benefício obtido pela maternal mediação de Maria? A segunda hipótese parece ser a mais provável, infelizmente.

Neste caso encontrará a humanidade a tão desejada, necessária e propalada paz? Jamais, se não a procurar onde realmente ela se encontra: “Deixemos, pois, as obras das trevas, e revistamo-nos das armas da luz” (Rm 13, 12).

1) CIC, nº 375-377.
2) Idem, nº 401.
3) PLAUTUS. Titus Macci, Asinaria, II. iv, 495.
4) QUINTUS, Horatius Flaccus. Satyrarum libri, livro 1, poema 8.
5) FERGUSON, William Scott. Greec Imperialism. Kitchener (Canadá): Batoche Books, 2001, pp. 68 e 69.
6) Cf. HERODOTUS. Book 1, Clio, nº 181. In Kitson, J., Herodotus Website, www.herodotuswebsite.co.uk, 2003.
7) Cf. Idem, 199.
8- Ibidem.
9) COULANGES, Fustel de. La Cité Antique, l. 3, c. 17. Paris: Flammarion, 1984, p. 78.
10) WEISS, Juan Bautista, Historia Universal.
Barcelona: La Educación, 1928, v. III, p. 653.
11) Idem, p. 654.
12) BOSSUET, Sermão de Natal ed.
Lebarq, t. 2 p. 274, Paris, Desclée, 1929.
13) SAN BUENAVENTURA. Breviloquio, p. 4ª: BAC, Obras de San Buenaventura, t. 1 p. 335.
14) AQUINO, São Tomás de. S.T. III q.35 a. 2 ad 4.
15) MALDONADO, P. Juan de, S. J.
Comentarios a los Cuatro Evangelios.
Madrid: BAC, 1951, v. II, p. 393-394.
16) Lib. 2, in c. 2 Lc. (Exposição do Evangelho segundo Lucas)

Mons. João Clá Dias, EP

(Revista Arautos do Evangelho, Dez/2007, n. 72, p. 10 à 17)

 

 

 

 

 

 

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4

dez

Glória e Paz!

Posted by Arautos do Evangelho
Filed under Evangelho de Natal
 

Neste Natal de 2008, em meio aos múltiplos dramas atuais, ecoam mais do que nunca para nós os cânticos dos Anjos, como outrora para os pastores. Eles nos oferecem a verdadeira paz, convidando-nos a subordinarmos nossas paixões à razão, e esta, à Fé.

MONS JOAO CLA_3.jpgMons. João Clá Dias, EP

I – Divina solução para os problemas atuais

“O presépio de Belém nos mostra o Homem perfeito que, unindo numa só pessoa a natureza divina e a natureza humana, restitui a esta a melhor parte de seus privilégios, perdidos pelo pecado, e a plenitude dos benefícios daí

decorrentes. Donde se segue que não temos outro meio de sermos homens – tanto do ponto de vista espiritual quanto do social – senão o de nos aproximarmos do Homem perfeito, da plena estatura da vita de Cristo: ‘donec occurramus in virum perfectum, in mensuram ætatis plenitudinis Christi'”. 1

O caminho para obter a harmonia, a concórdia e a paz

Por essa razão, ajoelhando-nos diante do Menino Deus – como o fizeram os Sagrados Esposos, os pastores, os Reis Magos e tantos outros -, estaremos contemplando os mais altos ensinamentos para ordenar toda a nossa vida cristã e social. Naquela Manjedoura se encontra “o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14, 6).

Naquele Menino vemos o Redentor, iniciando a Aula Magna do Seu Magistério, não ainda por meio de palavras, mas ensinando-nos, com não menor eloqüência, através do exemplo, o único e excelente meio para o restabelecimento da antiga atmosfera de nosso éden perdido: o espírito de sacrifício, de pobreza e de resignação no sofrimento.

Inúteis são as grandes assembléias para discutir de forma acalorada os dramas que, hoje em dia, atravessam as nações. Basta-nos essa belíssima lição posta diante de nossos olhos para recuperarmos nossa dignidade, nossa justiça original e até mesmo para a humanidade viver na harmonia, a concórdia e a paz que em tão alto grau existia no Paraíso Terrestre.

Nem a ciência com todo o seu progresso, nem a política com sua multissecular experiência, nem sequer o auxílio de todas as riquezas, são eficazes para solucionar os inúmeros problemas atuais. Se a sociedade resolvesse enveredar pelas vias que o Salvador nos oferece na simples recordação de Seu Santo Natal, viveria feliz, em meio à tranqüilidade universal.

Ele quis ser tudo para todos, e os seus não O receberam

Quão maravilhosa não teria sido a história de uma família que, por piedade e compaixão, tivesse aberto suas portas, na

EVANGELHO_84_8.jpg
Quão maravilhosa não teria sido a história de uma fa-
mília que tivesse aberto suas portas, nas mais bela
de todas as noites, para dar hospitalidade àquele
predestinados e bem-aventurados pais
“Maria e José chegam a Belém – Igreja Nossa Senho-
ra do Ó – Sabará – Brasil                    Victor Toniolo

mais bela de todas as noites, para dar hospitalidade àqueles predestinados e bem-aventurados pais? Porém, narra-nos São Lucas que não houve lugar para eles em nenhuma hospedagem (cf. Lc 2, 7). Diz-nos São João: “Ele veio aos seus, e os seus não O receberam” (Jo 1, 11).

Mais terrível ainda é a conduta dos povos, nações, e da própria humanidade dos presentes dias, que não só não querem ver nascer em seu meio esse Menino Deus e Sua Santa Igreja, mas, pior ainda, dão- Lhes as costas, e além de caluniá-Los e persegui-Los, põem-Lhes toda espécie de obstáculos para o exercício de Sua missão.

O Menino-Mestre não poderia ter escolhido melhor meio para colocar- Se à disposição de todos, manifestando um caráter de universalidade em Seu nascimento. Realizou-o em lugar público de livre acesso, sem que ninguém pudesse ser impedido de aproximar- se. Quis nascer pobre para facilitar a todos irem até Ele e, por outro lado, quis descender de sangue real para que os nobres não se sentissem inclinados a desprezá-Lo. Portanto, não chamou uma única classe social, mas quis ser tudo para todos.

Entretanto, os seus não só não O receberam, como, depois de Ele ter devolvido a vista aos cegos, a fala aos mudos, a audição aos surdos, a deambulação aos paralíticos, a saúde aos leprosos, a vida aos mortos, crucificaram- No. Triste e incompreensível acontecimento que se renova até os dias de hoje.

Porém, é por cima de todas as infidelidades que, na noite de Natal, ainda nos dias atuais, recordamos aquele canto: “Gloria in altis simis Deo et in terra pax hominibus bonæ voluntatis” – Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na terra aos homens objeto da Boa Vontade de Deus (Lc 2, 14).

II – A paz cantada e oferecida pelos anjos

EVANGELHO_84_1.jpg
Os seus não só não O receberam, mas cru-
cificaram-No – “Jesus Menino –  Colegiata de
de San Isidro, Madri Victor Toniolo

“E subitamente apareceu com o Anjo uma multidão da milícia celeste louvando a Deus e dizendo: ‘Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na terra aos homens objeto da Boa Vontade de Deus'” (Lc 2, 13-14).

Trata-se de um fato de grandeza incomensurável. O Unigênito gerado desde toda a eternidade é idêntico ao Pai e desejou encarnar-Se para, de dentro de uma natureza criada, poder louvá-Lo com toda submissão. O Divino Infante, ao nascer, oferece ao Pai um culto perfeito, além de reconciliar com Deus a humanidade, tornando-a, assim, apta para glorificá- Lo.

Essa é a causa da grande glória que Lhe prestam os puros e celestiais espíritos, pois exaltam a maior obra de Deus, na qual Ele manifesta ao universo Sua sabedoria, Sua misericórdia, Seu poder e tantas outras perfeições absolutas. Cumpre, desse modo, com superabundância e fidelidade, Suas mais antigas promessas.

Os Anjos, no Céu, cantam em ação de graças pelo mais extraordinário benefício realizado por Deus ao homem. Eles mesmos, puros espíritos, obtiveram frutos de tão grande obra, e até mesmo a própria perseverança deles teve a Redenção como fonte.

Nasceu o “Príncipe da Paz”

Nascemos sob a ira de Deus, devido ao pecado de nossos primeiros pais, mas podemos ser reconciliados com Ele por esse Divino Nascimento que, ademais, nos traz a tranqüilidade da consciência, a paz da alma e a harmonia entre os homens (cf. Ef 2, 14; Cl 1, 20).

“Quando a paz começava a reinar, os Anjos diziam: ‘Glória nas alturas e paz na terra’ (Lc 2, 14). Quando, porém, os de baixo receberam a paz dos de cima, eles proclamaram: ‘Glória na terra e paz nos Céus’ (Lc 19, 38). Quando a Divindade desceu à terra e se revestiu de humanidade, os Anjos proclamavam: ‘Paz na terra’. E quando a humanidade subiu e foi elevada, imergiu na Divindade e sentou-se à sua direita, os meninos clamavam diante dela: ‘Paz nos Céus, hosana nas alturas!’ (Mt 21, 9). Assim, o Apóstolo pôde dizer: ‘Por intermédio dAquele que, ao preço do próprio sangue na cruz, restabeleceu a paz a tudo quanto existe na terra e nos céus’ (Cl 1, 20).

“Os Anjos diziam: ‘Glória nas alturas e paz na terra’; e os meninos: ‘Paz nos Céus e glória na terra’ (Lc 19, 38). Aparece EVANGELHO_84_3.jpgassim com clareza que, como a graça da misericórdia de Cristo alegra os pecadores na terra, assim também seu arrependimento atinge os Anjos do Céu” (cf. Lc 15, 7-10).2

O Menino louvado pelos Anjos é o “Príncipe da Paz” anunciado sete séculos antes por Isaías (9, 5) e que, anos mais tarde, afirmará serem bem-aventurados os pacíficos – aqueles que sabem estabelecer em si mesmos e nas almas dos outros o reino da paz – dando-lhes o título de Filhos de Deus.

Precioso dom que não nos será retirado

O beata nox! Sim, bendita noite que assiste ao nascimento de um Menino a inaugurar uma nova era histórica. Naquela noite foi oferecido à humanidade um precioso dom que não lhe seria retirado nem mes mo quando aquele Menino retornasse à eternidade: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá. Não se perturbe o vosso coração nem se atemorize” (Jo 14, 27). “

Qual é o sentido destas palavras? Eis: Eu não vo-la dou como dão os homens que amam o mundo. Estes, com efeito, oferecem a paz, a fim de – livres de preocupações, de processos e de guerras – poderem gozar, não de Deus, mas do mundo, ao qual entregaram o seu afeto. E quando eles oferecem a paz aos justos, cessando de persegui-los, não é uma paz verdadeira, porque não há verdadeiro acordo onde os corações estão desunidos. Chamamos consortes àqueles que unem sua sorte. Aqueles que unem seus corações, do mesmo modo, devem se chamar concordes. Para nós, meus caríssimos irmãos, Jesus Cristo nos deixa a paz e nos dá sua paz, não como a dá o mundo, mas como a dá Aquele por quem foi criado o mundo. Ele no-la dá para que todos estejamos de acordo, para que estejamos unidos de coração e, tendo um só coração, o elevemos ao alto, não nos deixando corromper na terra”.3

A pseudo-paz que o mundo nos oferece

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São Pio X“O presépio de Belém nos mostra
o Homem perfeito que, unindo numa só pessoa
a natureza divina e a natureza  humana, restitui
a esta a melhor parte de seus privilégios, per –
didos pelo pecado”. Felici

Todas as palavras de Jesus são de vida eterna e misteriosamente atraentes, mas, sendo recordadas bem junto ao Presépio, levam-nos a querer penetrar a fundo em seu significado, sobretudo, as que se referem à paz trazida a nós naquela noite. Qual será sua natureza? É ela que toda criatura humana com sofreguidão deseja, mas quão freqüentemente a busca onde ela não se encontra e, mais ainda, se equivoca quanto ao seu verdadeiro conteúdo e substância!

Não consistirá nesse equívoco a causa principal de o mundo estar quase sempre pervadido por guerras e catástrofes ao longo de vários milênios? Tudo fruto da pseudopaz que o mundo nos oferece, bem diferente da que os Anjos cantaram aos pastores, naquela bendita noite de Natal.

A esse propósito, comenta Orígenes: “Onde não está Jesus, há disputas e guerras, mas onde Ele está presente tudo é serenidade e paz”.4 Santo Agostinho afirma que a paz consiste em um “bem tão nobre que, mesmo entre coisas mortais e terrenas, nada há de mais grato ao ouvido, nem mais doce ao desejo, nem superior em excelência”.5 E São Beda acrescenta: “A verdadeira, a única paz das almas neste mundo consiste em estar cheias de amor de Deus e animadas da esperança do Céu, a ponto de considerar pouca coisa os êxitos ou reveses deste mundo. […] Engana-se quem imagina que poderá encontrar a paz no gozo dos bens deste mundo e nas suas riquezas. As freqüentes perturbações nesta terra e o fim deste mundo deveriam convencer o homem de que ele construiu sobre areia os fundamentos de sua paz”. 6

Paz e pecado não podem viver juntos

A paz cantada e oferecida pelos Anjos encontra-se na santidade pa ra a

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Beato João XXIII – “A paz na terra, anseio
profundo de todos os homens  e  de  todos os
tempos, não se pode estabelecer nem conso-
lidar senão no pleno respeito da ordem resti-
tuída por Deus.” Felici

qual todos nós somos chamados. Fomos criados por Deus e para Ele; enquanto a suma Verdade não ilumine nossa inteligência, enquanto o Bem supremo não ocupe um lugar primordial em nosso coração, serão frustrados nossos esforços em busca da paz. Num mesmo coração não podem viver juntos a paz e o pecado. “Não há paz no coração do homem carnal, nem no do homem entregue às coisas exteriores, mas somente no daquele que é fervoroso e espiritual”. 7 Por isso, quanto mais procuro a paz nos gozos deste mundo, mais me acusará minha consciência pelo fato de me colocar fora da ordem do universo, e sobretudo se, por desgraça, venha eu a abraçar as vias do pecado. Neste caso, serei objeto do ódio de Deus e dos raios de Sua santa cólera. Pior ainda será minha situação se eu conseguir abafar a voz de minha consciência; aí, no silêncio profundo de meu inveterado e pérfido coração, se evanescerão os remorsos, angústias e temores pela virtude perdida. E neste caso, a morte ocupará o lugar deixado em minha alma pela antiga paz.

Em realidade, o que é a verdadeira paz?

Diz-nos São Tomás de Aquino: “Quem tem um desejo, deseja também a paz, uma vez que ele almeja obter tranqüilamente e sem impedimentos o objeto desejado. E nisso consiste a paz, que Santo Agostinho define como ‘a tranqüilidade da ordem'”. 8 Portanto, nossos anseios sempre são acoplados a uma busca de paz. E a única capaz de satisfazer o coração humano é aquela oferecida pelos Anjos a toda a humanidade, na pessoa dos pastores.

Tranqüilidade e ordem são os elementos constitutivos dessa paz. Pode vir a existir tranqüilidade sem ordem, e vice-versa: em nenhum desses casos haverá verdadeira paz, ainda que desta possam existir aparências.

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Bento XVI“A paz deve ser construída
nos corações. De fato é neles que se desen-
volvem sentimentos que podem alimentá-la
ou, ao contrário, ameaçá-la,  enfraquecê-la,
sufocá-la.” Felici

Não é por mera expansividade que os Anjos cantam em primeiro lugar: “Glória a Deus no mais alto dos Céus…” (Lc 2, 14), pois a verdadeira paz procede do Espírito Santo, como as plantas nascem das sementes ou das raízes, tal qual ressalta São Paulo: a paz é “fruto do Espírito Santo” (Gl 5, 22) e “está acima de todo entendimento” (Fl 4, 7). O Doutor Angélico afirma, e torna-se óbvio, que vive em perfeita ordem quem está unido a Deus, pois Ele ordena as potências da alma, com seus sentidos e faculdades, por ser Ele mesmo o primeiro princípio e último fim de toda a criação. Daí produzir essa união o repouso interior. Ademais, quando nossa união com Deus é plena, não pode haver perturbação porque tudo o que não é Deus, reputamos como sendo nada, conforme proclama São Paulo: “Se Deus está conosco, quem estará contra nós?” (Rm 8, 31).

É-nos fácil compreender como o homem que está em paz com Deus também o estará consigo mesmo, assim como com os demais, pois o fundamento da verdadeira paz é viver em paz com Deus Nosso Senhor. Por isso nos diz São Cirilo: “Envergonhemonos de prescindir do dom da paz, que o Senhor nos deixou quando ia sair do mundo. A paz é um nome e uma coisa saborosa, a qual sabemos que provém de Deus, como diz o Apóstolo aos filipenses: a paz de Deus. E que ela é de Deus, mostra-o também quando diz aos efésios: Ele é nossa paz. A paz é um bem recomendado a todos, mas observado por poucos. Qual é a causa disso? Talvez a ambição de poder, a inveja, o ódio ao próximo, ou algo do gênero, que vemos naqueles que desconhecem o Senhor. A paz procede de Deus, o qual é quem une tudo […] Transmitea aos Anjos […] e se estende também a todas as criaturas que verdadeiramente a desejam”.9

Principal razão pela qual os homens de hoje não acham a paz

Se, como acima dissemos a paz é fruto do Espírito Santo, a base dela se encontra fixa na vida da graça e da caridade. Ora, o Autor da graça é Jesus Cristo: “A graça e a verdade vieram por Jesus Cristo” (Jo 1, 17). E, portanto, é Ele também o autor da paz: “Cristo é a nossa paz” (Ef 2, 14).

Essa é a principal razão de não encontrarem os homens de hoje a verdadeira paz. Claro! Pois ela não surge dos tratados. Quando muito, aordem externa das nações consegue reparar os estragos materiais do pósguerra, mas somente a tranqüilidade e ordem da alma é que – enquantoelementos essenciais – trazem a autêntica paz. Esta se evanesceu do concerto das nações e nem sequer no interior das mesmas nós a podemos desfrutar.

E o que dizer das dissensões no seio das famílias, instituição que a cada passo ainda mais se deteriora pela agressão de vários fatores adversos conjugados: corrupção moral progressiva, desfazimento da autoridade paterna, generalizada violação da fidelidade conjugal, desprezo da Lei de Deus e até mesmo do bem social no cumprimento dos sagrados deveres para com os filhos?

Todas essas desordens têm sua causa no próprio homem atual, penetrado de descontentamento em seu coração, irmão siamês do fastio, acidez e inquietação. Quase toda criatura humana, hoje em dia, é possuída por um espírito de insubordinação a qualquer tipo de autoridade, seja ela eclesiástica, religiosa, política, familiar, etc. Sem falar da processiva perda do pudor, que constitui hoje o mal de todos os povos…

Magistério dos Papas

Sábias, a esse propósito, foram as palavras do Beato João XXIII em sua famosa Encíclica Pacem in Terris:

“A paz na terra, anseio profundo de todos os homens de todos os tempos, não se pode estabelecer nem consolidar

EVANGELHO_84_6.jpg
Os anjos não ordenam aos pastores visitar o
Salvador recém-nascido; entretanto eles se
apressam a ir em busca do Menino para vê-
Lo e adorá-Lo.
“Natividade e anúncio aos pastores” por Sano
do Pietro – Pinacoteca Vaticana     Vitor

senão no pleno respeito da ordem instituída por Deus. […] Contrasta clamorosamente com essa perfeita ordem universal, a desordem que reina entre indivíduos e povos, como se as suas mútuas relações não pudessem ser reguladas senão pela força. […] “

Em última análise, só haverá paz na sociedade humana, se essa estiver presente em cada um dos membros, se em cada um se instaurar a ordem querida por Deus. Assim interroga Santo Agostinho ao homem: ‘Quer a tua alma vencer tuas paixões? Submeta-se a quem está no alto e vencerá o que está em baixo. E haverá paz em ti, paz verdadeira, segura, ordenadíssima. Qual é a ordem dessa paz? Deus comandando a alma, a alma comandando o corpo. Nada mais ordenado'”.10

E em recente pronunciamento, Bento XVI, nosso Pontífice felizmente reinante, assim se exprimiu sobre o mesmo tema: “Em primeiro lugar, a paz deve ser construída nos corações.

De fato é neles que se desenvolvem sentimentos que podem alimentá-la ou, ao contrário, ameaçá-la, enfraquecê-la, sufocá-la. Aliás, o coração do homem é o lugar das intervenções de Deus. Portanto, ao lado da dimensão ‘horizontal’ das relações com os outros homens, revela- se de importância fundamental, nesta matéria, a dimensão ‘vertical’ da relação de cada um com Deus, no qual tudo tem o seu fundamento”.11

Glória no Céu e paz na terra

Por isso, neste Natal de 2008, em meio aos múltiplos dramas atuais, ecoam mais do que nunca para nós os cânticos dos Anjos, como outrora para os pastores. Eles nos oferecem a verdadeira paz, a cada um de nós em particular, convidando-nos a subordinarmos nossas paixões à razão, e esta, à Fé. Oferecem- nos também o término da luta civil, da luta de classes e das próprias guerras entre as nações, com a condição de observarmos cuidadosamente as exigências impostas pela hierarquia e pela justiça. Em síntese, é-nos indispensável, para recebermos dos Anjos essa oferta tão ansiada por nós, estarmos em ordem com Deus, reconhecendo nEle o nosso Legislador e Senhor, e amando-O com todo entusiasmo.

É o que, com tanta lógica e unção, comenta São Cirilo: “Não O olhes simplesmente como um menino depositado num presépio, mas em nossa pobreza devemos vê-Lo rico como Deus, e por isso é glorificado inclusive pelos Anjos: ‘Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade’. Pois os Anjos e todas as potências superiores conservam a ordem que lhes foi dispensada e estão em paz com Deus. De modo algum se opõem ao que Lhe agrada, mas estão firmemente estabelecidos na justiça e na santidade. Nós somos desgraçados ao colocar nossos próprios desejos em oposição à vontade do Senhor, e nos colocamos nas fileiras de seus inimigos. Isso foi abolido por Cristo, pois Ele mesmo é a nossa paz (cf. Ef 2, 14) e nos une por sua mediação com Deus Pai, tirando o pecado, causa de nossa inimizade, justificando-nos pela fé e aproximando os que estão distantes. Além disso, modelou os dois povos em um homem novo, fazendo a paz e reconciliando ambos em um só corpo com o Pai (cf. Ef 2, 15-16). Com efeito, agradou a Deus Pai reunir nEle todas as coisas, e unir os de cima com os de baixo, os do Céu e os da terra, e dizer que há um só rebanho. Cristo tem sido para nós paz e boa vontade”.12 E com não menor espiritualidade, acrescenta São Jerônimo: “Glória no Céu, onde não há dissensão alguma, e paz na terra, onde há guerras diariamente. ‘E paz na terra’. E em quem essa paz? Nos homens. […] ‘Paz aos homens de boa vontade’, isto é, àqueles que recebem Cristo recém-nascido”. 13

III – O exemplo de Fé dos pastores

EVANGELHO_84_4.jpg“Quando os Anjos se retiraram deles para o Céu, os pastores diziam entre si: ‘Vamos até Belém, e vejamos o que é que lá aconteceu e o que é que o Senhor nos manifestou’. Foram a toda a pressa, e encontraram Maria, José, e o Menino deitado na manjedoura. Vendo isto, contaram o que lhes tinha sido dito acerca deste Menino. E todos os que ouviram, se admiravam das coisas que os pastores lhes diziam. Maria conservava todas estas coisas, meditando- as no seu coração. Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que haviam ouvido e visto, conforme lhes tinha sido dito” (Lc 2, 15-20).

Na Celebração Eucarística da Aurora, portanto na segunda Missa de Natal, narra-nos São Lucas que, após terem cumprido sua missão, retornaram os Anjos ao Céu. É curioso notar que os Anjos não ordenam aos pastores visitar o Salvador recém-nascido: apenas lhes indicam o local. Entretanto, imediatamente após a retirada dos puros espíritos, eles se apressam a ir em busca do Menino para vê-Lo e adorá-Lo. Com essa bela atitude, ensinam aos que amam a fidelidade, a serem dóceis, diligentes e ágeis em praticar com toda prontidão o bem que lhes seja insinuado, inspirado, ou de qualquer outro modo comunicado pelo Senhor, caso contrário, incorrerão numa falta.

Convite a um exame de consciência na noite de Natal

Quiçá, ajudando- me a meditar sobre esses fatos acontecidos em Belém, meu Anjo da Guarda me fale no fundo da alma uma palavra decisiva para eu mudar algo em minha vida, ou até mesmo o rumo que adotei, e assim cumprir o fim para o qual fui criado.

Os cânticos, a Liturgia, as leituras, os sermões, etc., dessa Noite trarão à minha lembrança o Nascimento do Salvador. Estarei, eu também, sendo convidado a ir a Belém, como o foram os pastores. Que sentimentos passarão em meu interior? Terei eu a mesma santa sofreguidão que os acometeu naquela ocasião?

Não é necessário que eu empreenda uma viagem à Gruta de Belém, mas sim que eu tenha a mesma reação dos pastores, ou seja, total prontidão, por exemplo, a dirigir-me a um Tabernáculo onde vive à minha espera o meu Redentor, o próprio que foi adorado por eles na Manjedoura. Quantos pretextos aparentemente legítimos poderiam ter alegado os pastores para não se moverem com pressa em busca do Menino: a longa distância a percorrer, o quanto constituía um verdadeiro perigo abandonar o rebanho, o inverno já se fazia sentir vigoroso, a noite dominava os campos, etc. Quantos católicos, hoje em dia, por sua frivolidade, deixam de cumprir suas obrigações de culto, escorando-se em justificações as mais banais, ou até mesmo em fantasiosas irrealidades! Nada pôde retardar o passo daqueles piedosos camponeses e por isso, com todo merecimento, encontraram não só Jesus, como também Maria e José.

Heróica fé diante de um frágil menino

Veneremos também, nessa noite, a heróica e robusta fé daqueles homens tão simples. A equivocada crença daquelesEVANGELHO_84_3.jpg tempos era de que o Salvador prometido deveria ser um homem cheio de poder para livrar seu povo de todo e qualquer inimigo, a fim de conceder-lhe a supremacia sobre todos os outros povos. Portanto, um libertador rutilante de esplendor, de glória e de majestade maiores ainda que as do próprio Salomão. Ora, em vez de se depararem com um temível e grandioso imperador, acham-se diante de um frágil Menino, envolto em panos. Junto a Ele, um boi e um burro para aquecê-Lo, um pobre artesão, uma mulher cheia de simplicidade. Enfim, tudo o que o mundo de então – e de todos os tempos – julgava mais vil e desprezível. Apesar disso, em nenhum momento foram penetrados pela menor dúvida ou mesmo insegurança. Acreditaram de toda alma ser aquele Menino o esperado Salvador. Será essa também a minha fé na Igreja de Deus, tão infalível quanto os Anjos?

A Fé, um tesouro que não comporta egoísmos

Uma vez cumprido o dever imposto pelos seus fervorosos corações, “voltaram glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido, conforme lhes tinha sido dito”. É o primeiro efeito que a Fé produz, quando é sincera, ou seja, o dinâmico desejo de fazer participar dela todos os que se encontrem pelo caminho. Essa Fé é um tesouro que não comporta egoísmos, ela exige ser compartilhada por outros, é expansiva. Por isso, nesse episódio, nós encontramos os pastores como arautos da Boa Nova, pregadores simples e sem maiores recursos de oratória, mas eloqüentes.

Essa é também a obrigação de todos nós, batizados. Vem a propósito relembrar aqui a admoestação que a esse respeito nos faz São Beda: “Os pastores não guardaram silêncio sobre os divinos mistérios que lhes foram revelados, mas os comunicaram a todos quantos puderam. A isso também estão destinados os pastores espirituais da Igreja: pregar os mistérios da Palavra de Deus e ensinar seus ouvintes a admirar as maravilhas que aprenderam nas Escrituras”. 14

Cabe-nos, portanto, tomar como modelo, também neste aspecto, os pastores; pois, se é viva nossa Fé, devemos comunicá-la, dando a conhecer Jesus, as belezas da Igreja, etc., a todos que nos rodeiam, especialmente àqueles sobre os quais temos alguma autoridade. Não nos esqueçamos de que a salvação eterna deles nos foi em certa medida confiada e, nesta matéria, um relaxamento poderá constituir falta grave. Claro está que o ímpio morrerá em sua iniqüidade, por castigo de sua malícia: “Impius in iniquitate sua morietur…” (Ez 3, 18). Entretanto, aquele que tinha obrigação moral de instruí-lo, e até de repreendê-lo, e assim não procede, deverá prestar contas a Deus, no dia de seu Juízo, e pagará pela perda de seu irmão: “…sanguinem autem ejus de manu tua requiram” – “…mas é a ti que pedirei conta do seu sangue” (Idem, ibidem).

1 PIO X, São. Discurso de 23/12/1903 apud Lettres Apostoliques de S. S. Pie X. Paris: Maison de la Bonne Presse, v. I, p. 210.
2 EPHREM DE NISIBE, Saint. Commentaire de l’Évanglile Concordant ou Diatessaron, Lc 2, 14. Paris: Éditions du Cerf, 1966, p. 73.
3 AUGUSTINUS HIPPONENSIS, Sanctus. In Evangelium Ioannis, t. 77.
4 Apud: AQUINO, São Tomás de. Catena Aurea, in Mt. c. 27, l. 4.
5 AUGUSTINUS HIPPONENSIS, Sanctus. De Civitate Dei. L. XIX, 11
6 BEDA VENERABILIS, Sanctus. Homilia XI in Vigilia Pentecostes.
7 KEMPIS, Tomás de. Imitación de Cristo, Libro I, cap. 6, 2.
8 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica II-II, q. 29, a. 2.
9 Apud: AQUINO, São Tomás de. Catena Aurea, in Lc 24, vv. 36-40.
10 JOÃO XXIII, Carta Encíclica Pacem in Terris, 11/4/1963, nn. 1, 4 e 164.
11 BENTO XVI, Mensagem no XX aniversário do Encontro Inter-Religioso de Oração pela Paz, 2/9/2006.
12 CIRILLUS ALEXANDRINUS, Sanctus. Commentarii in Lucam, 2, 14.
13 HIERONYMUS PRESBYTERUS, Sanctus. Homilia de Nativitate Domini, n. 65 (Morin n. 394).
14 BEDA VENERABILIS, Sanctus. Homilia VI – In Aurora Nativitatis Domini e In Lucæ evangelium expositio, c. 2.

Mons. João Clá Dias, EP

(Revista Arautos do Evangelho, Dez/2008, n. 84, p. 10 à 19)

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Eternidade feliz

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Evangelho:

1 No princípio existia o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. 2 Estava no princípio com Deus. 3 Todas as coisas foram feitas por Ele; e sem Ele nada foi feito. 4 N’Ele estava a vida, e a vida era a luz dos homens; 5 e a luz resplandeceu nas trevas, mas as trevas não O receberam. 6 Apareceu um homem enviado por Deus que se chamava João. 7 Veio como testemunha para dar testemunho da luz, a fim de que todos cressem por meio dele. 8 Não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz. 9 O Verbo era a luz verdadeira, que vindo a este mundo ilumina todo o homem. 10 Estava no mundo, e o mundo foi feito por Ele, mas o mundo não O conheceu. 11 Veio para o que era seu, e os seus não O receberam. 12 Mas a todos os que O receberam, àqueles que crêem no seu nome, deu poder de se tornarem filhos de Deus; 13 eles que não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus. 14 E o Verbo fez-se carne, e habitou entre nós; e nós vimos a sua glória, glória como de Filho Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade. 15 João dá testemunho d’Ele e clama: “Este era Aquele de Quem eu disse: O que há de vir depois de mim é mais do que eu, porque existia antes de mim”. 16 Todos nós participamos da sua plenitude, e recebemos graça sobre graça; 17 porque a Lei foi dada por Moisés, mas a graça e a verdade foram  trazidas por Jesus Cristo. 18 Ninguém jamais viu a Deus; o Unigênito de Deus, que está no seio do Pai, Ele mesmo é que O deu a conhecer (Jo 1, 1-18).

É uma lei da História, Deus sempre encontrou uma solução superior aos seus planos anteriores, ao serem estes frustrados pela incorrespondência das criaturas. Como contemplar o Natal sob o prisma dessa constância do proceder divino? Acompanhemos os comentários da Liturgia de hoje.

MONS JOAO CLA_3Mons. João Clá Dias, EP

I – FRUSTRADO O PLANO DE DEUS?

As autênticas obras de arte levam seus autores a com elas se encantarem logo após o último retoque. O grande Michelangelo foi um exemplo pitoresco ao contemplar seu famoso “Moisés”. A escultura se apresentou diante de seus olhos com tanta realidade que arrancou de seu italianíssimo coração a célebre exclamação: “Parla! Perche non parla?” Sim, só faltava falar aquela bela figura lavrada em mármore. Mas, para tal, era preciso uma arte ainda mais requintada, a de poder transmitir-lhe a prória vida. Todavia, Michelangelo nada pôde fazer nesse sentido, a não ser, cheio de emoção, desferir um golpe de martelo no joelho da estátua, produzindo-lhe a marca que ainda hoje pode ser vista.

Esse episódio nos faz recordar outro semelhante e mais antigo, o do insuperável e perfeitíssimo boneco de barro. Modelado com precisão absoluta, seu Autor se encantou ao contemplá-lo e, sendo infinitamente mais capaz do que Michelangelo, com um simples sopro, infundiu-lhe a vida humana: “O Senhor formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem se tornou um ser vivente” (Gen 2, 7). E se isso não bastasse para consagrar a onipotência de Deus, determinou Ele também a criação de Eva: “Então o Senhor Deus mandou ao homem um profundo sono; e enquanto ele dormia, tomou-lhe uma costela e fechou com carne o seu lugar. E da costela que tinha tomado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher, e levou-a para junto do homem” (Gen 2, 21-22).

Assim, criou-os na graça, além de infundir-lhes especiais dons e virtudes.ADAO E EVA_13

Mas nossos primeiros pais usaram mal do livre-arbítrio, desobedeceram. Por isso perderam todos os privilégios sobrenaturais, foram expulsos do Paraíso e, com seus descendentes, condenados a retornar ao pó do qual haviam se originado: “Comerás o pão com o suor de teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e em pó te hás de tornar” (Gen 3, 19).

À primeira vista pareceria estar irreversivelmente frustrado o plano de Deus, sua obra marcada pela feiúra.

Como reviver aquela alegria diária, “do Senhor Deus que passeava no jardim à hora da brisa da tarde” (Gen 3-8) com aquele varão, o fruto de sua onipotência? Escolher um barro melhor e elaborar um outro ser mais inclinado à obediência? Recomeçar da estaca zero, no fundo, seria assumir o fracasso. Indispensável era encontrar uma solução superior, bela e muito mais eficaz do que o próprio plano anterior. O que para os homens é impossível, para Deus é possível, conforme afirma Mateus (vv.19, 26).

II – DIVINA SOLUÇÃO PARA UM PROBLEMA INSOLÚVEL

Aproximemo-nos da manjedoura na gruta em Belém e contemplemos um Menino reluzente de vitalidade, sabedoria e graça. A diplomacia divina não podia haver elaborado melhor forma para remediar todos os males trazidos pelo pecado. Um Homem-Deus…

Esse é o fundo de quadro de grandiosidade do Evangelho de hoje: “A todos que O receberam, àqueles que crêem no seu nome, deu poder de se tornarem filhos de Deus; eles não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus” (vv. 12-13).

Excelente tema para se considerar nesta festa de Natal: um Menino adorável, Deus e Homem verdadeiro, com todas as fragilidades de uma criatura, porém unida hipostaticamente ao Onipotente.

Aí está o Menino Redentor que naquela Noite Feliz nos abriu não só os braços mas – e sobretudo – a possibilidade de MOISES_1termos uma participação em sua divina natureza. Quão extraordinário é para nós esse dom! Apliquemonos em compreendê-lo melhor.

A Redenção nos tornou filhos de Deus

Estamos habituados a conferir o título de filho de Deus a qualquer pessoa a ponto de constituir, talvez, uma certa ofensa em negá-lo a quem quer que seja. Mas esta atitude não passa de um profundo equívoco, pois os não-batizados são puras criaturas, e não filhos de Deus. Da mesma forma que não posso afirmar serem os móveis filhos do marceneiro que os produziu, pois dele não receberam a natureza humana, assim também não se pode dar o título de filho de Deus a uma pessoa que não participa da natureza divina.

Pois, para ser filho, necessita-se ter a mesma natureza do pai; por isso os filhos dos coelhos chamam-se coelhos, e os dos homens são homens. E os filhos de Deus devem ser “deuses” como Ele o é.

Ademais, as capacidades de toda criatura sempre estão em proporção de sua respectiva natureza. Por exemplo, o colibri tem as aptidões que lhe são próprias, e ignorância consumada seria dar-lhe para resolver um problema de álgebra ou de simples aritmética. Assim também, são puramente humanas as forças do homem, nunca divinas.

Ora, o prêmio deve estar proporcionado aos predicados de quem o mereceu. Jamais seria adequado conceder a um corcel, por sua agilidade e capacidade físicas, um prêmio intelectual, pois, não só ele não o entenderia, como seria um verdadeiro absurdo. Da mesma forma, todos os prêmios conquistáveis pelo homem, devido à sua natureza própria, nunca poderiam ser divinos, são sempre puramente humanos.

Esta é a razão pela qual o Céu não se obtém pelos esforços, nem sequer da natureza angélica. Por mais que nos fosse dado praticar todos os Mandamentos da Lei de Deus, jamais poderíamos, por nós mesmos, entrar no Céu, pois, a essência deste consiste em ver Deus face a face, e só as três Pessoas da Santíssima Trindade possuem esse privilégio desde toda eternidade e por toda eternidade.

É justamente no Presépio que se encontra representado o retorno da vida sobrenatural para nós. Ali está Quem não só nos abriu as portas do Céu, mas também nos elevou à categoria de filhos de Deus.

Deu início à era da graça

Não há no vocabulário humano palavras para exaltar suficientemente as incontáveis e preciosas maravilhas a nós concedidas naquela Noite Feliz.

Na ordem dos seres criados podemos encontrar certas analogias ilustrativas, para melhor nos fazer compreender essa infusão divina de que ora tratamos. Uma barra de ferro submetida numa forja a altas temperaturas, não tardará em tornar-se incandescente. Segundo comenta São Tomás de Aquino, a barra, sem deixar de ser ferro, adquirirá todas as propriedades do fogo; exemplo, portanto, de como, pela graça, Deus diviniza nossas almas. São Boaventura serviu-se da figura de um vitral iluminado pelo sol para nos explicar a mesma realidade sobrenatural. O que é o vitral sem os raios de luz – pergunta ele – e o que somos nós sem a graça?

Outros autores se basearam em exemplos oriundos do reino vegetal para nos tornar acessível uma certa idéia sobre esse tão rico fenômeno sobrenatural. Assim, enxertando-se um ramo de laranjeira num pé de romã, as laranjas nascerão com todas as suas características próprias e, ademais, terão a coloração e o sabor da romã. Também Deus, por meio de um iPresepio 01nsuperável enxerto da graça em nós, eleva- nos a participar de sua natureza divina.

Esse inefável milagre se inicia no Presépio, em Belém. É o mistério da Redenção: nossos pecados podem ser perdoados e, isentos de toda culpa, somos reintegrados à ordem sobrenatural.

Amou-nos como irmãos

Fixemos nosso olhar nesse Menino que se encontra reclinado na manjedoura de Belém e contemplemos Aquele no qual “foram criadas todas as coisas (…) tudo foi criado por Ele e para Ele” (Col 1, 16).

Essas afirmações contidas na Revelação pela lavra de São Paulo Apóstolo, pedem um aprofundamento: “Por Ele” quer  dizer que o Menino Deus foi o Criador. “Para Ele”, ou seja, tudo o que existe – e em especial os seres inteligentes – têm a obrigação de glorificá-Lo. “N’Ele”, significa que Ele serviu de modelo para a nossa criação.

“Noite feliz, noite feliz! O Senhor, Deus de Amor, pobrezinho nasceu em Belém. Eis, na lapa, Jesus, nosso Bem. Dorme em paz, ó Jesus”. Serão as palavras que ouviremos repetir-se neste Natal, na evocativa melodia do “Stille Nacht”, um tocante raio de paz em meio aos dramas e preocupações dos dias atuais.

“Deus de amor”, Ele sempre o foi e jamais deixará de sê-lo. Esse amor é eterno como o próprio Deus. “Amo-te com amor eterno” (Jr 31, 3). Gozando de uma felicidade perfeita e infinita, não tinha Ele necessidade do homem nem dos Anjos. O amor O levou a tirar do nada inúmeras criaturas, concedendo-lhes a possibilidade de participarem de sua Vida. Foi por essa razão que “o Verbo se fez carne, e habitou entre nós” (v. 14), mas a Encarnação foi apenas o primeiro passo em sua via de dileção por nós. Ele se fará nosso companheiro de todos os dias, o amigo de nossa existência. Esse amor, sendo pertinaz, não se satisfez e desejou elevar-nos à categoria de sermos seus irmãos.

E que fez Ele para tal?

Homem de nosso sangue e nossa raça

Deus não moldou outro boneco de barro como para o primeiro Adão. Se assim tivesse procedido, Ele não teria o nosso sangue, não pertenceria à nossa família, não seria nosso irmão. Apesar de sua geração não ter se dado de forma idêntica à nossa, entretanto Ele foi concebido por uma mulher, e dela nasceu. Mulher bem-aventurada entre todas, santa e imaculada, única e cheia de graça, virgem e mãe, mas enfim, filha de Adão. Por isso Jesus, além de verdadeiro Filho de Deus, é também Filho do Homem, de nosso sangue e de nossa raça. Esta é a razão pela qual, no decurso de sua vida, Ele se fez reconhecer por estes dois títulos, pois, se pelo primeiro deles Jesus se identificava com o próprio Deus, pelo segundo, aproximava seu Sagrado Coração do nosso.

Porém, sendo Ele “Deus verdadeiro, de Deus verdadeiro, gerado e não criado, consubstancial ao Pai”, pareceria mais segundo a lógica escolher um corpo glorioso proporcionado à sua alma que sempre esteve no pleno gozo da visão beatífica. Esse corpo deveria estar isento das dores, sofrimentos e contingências tão comuns pobres mortais, filhos de Eva. Seria mais compreensível que o esplendor da majestade marcasse suas exterioridades – tal qual imaginavam e desejavam os judeus -, um Messias triunfante, dominador sobre todos os povos. Renunciou a todas essas glórias e, nessa Noite Feliz, vemo-Lo um Bebê num estábulo, coCOLIBRI_1nforme nos descreve Bossuet:

“‘Encontrareis um Menino envolto em panos e deitado numa manjedoura’ (Lc 2, 12). Vós conhecereis por esse sinal que Esse é o Senhor. Ides à corte dos reis, vós conhecereis o príncipe recém-nascido por suas colchas recamadas de ouro e por um soberbo berço, o qual bem poderia ser um trono. Mas, para conhecer o Cristo que vos nasceu – esse Senhor tão elevado que Davi, seu pai, apesar de ser rei, O chama de ‘seu Senhor’ – não vos será dado outro sinal senão o da manjedoura, na qual se encontra deitado, e dos pobres panos nos quais está envolta sua débil infância. Ou seja, não Lhe foi dada senão uma natureza semelhante à vossa, debilidades como as vossas, uma pobreza abaixo da vossa. Quem de vós nasceu numa manjedoura? Quem de vós, por mais pobre que seja, dá a seus bebês uma manjedoura por berço? Jesus foi o único que se via colocado nessa situação extrema, e é sob esse signo que deseja ser conhecido. Se Ele quisesse se servir de seu poder, que ouro coroaria sua fronte! Que púrpura brilharia sobre seus ombros! Que pedrarias enriqueceriam suas roupas!” (1)

E foi por causa dessas aparências que os pastores reconheceram haver nascido “na cidade de Davi um Salvador, que é o Cristo, o Senhor” (Lc 2, 11). “E nós vimos a sua glória, glória como de Filho Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade” (v. 14). “Ninguém jamais viu a Deus; o Unigênito de Deus que está no seio do Pai, Ele mesmo é que O deu a conhecer” (v. 18).

Eis mais um incomensurável benefício dessa Noite Feliz: Jesus nos facilita e nos conduz a conhecer a Deus.

Deus se torna acessível e imitável

Ensina-nos a Filosofia nada existir em nossa inteligência que não tenha antes passado pelos sentidos. Daí uma grande dificuldade em conhecermos a Deus. As próprias parábolas do Divino Mestre procuram involucrar as doutrinas em figuras e imagens, para tornar acessível ao espírito humano a assimilação de um universo de princípios éticos, morais e religiosos. O homem necessita do conhecimento concreto para compreender o espiritual. A Epístola de hoje nos revela o grande milagre realizado pela Providência, naquela Noite Feliz:

“Deus, tendo falado outrora muitas vezes e de muitos modos aos nossos pais pelos profetas, nestes dias que são os últimos, falou-nos por meio de seu Filho” (Heb 1, 1-2).

Percorramos todos os conselhos e considerações descritos no livro da Sabedoria, ou no Eclesiástico, e veremos nada se comparar com a contemplação do Menino-Deus reclinado no Presépio. Deduzir as aplicações decorrentes da Lei Moral escrita numa pedra, não é fácil para o espírito humano e, menos ainda, conceber a imagem de Deus. Entretanto, ao fazer-se homem, Deus se tornou acessível e imitável.

Na mais feliz noite da História, os atributos de Deus se tornaram menos impenetráveis para nós. Jesus, além de externar a grandeza de sua onipotência, elevando o homem à divinização pela graça, pôde dizer- se impecável: “Quem de vós poderá argüir-me de pecado?” (Jo 8, 46). Só n’Ele foi possível contemplar a grandeza absoluta na inteira harmonia com a plenitude da despretensão e humildade.

Essas dádivas todas começaram seu curso na Gruta de Belém, trazidas pelo Menino-Deus, coberto não só pelo estrelado manto da noite, mas também por um véu de mistério. Ele padece frio, chora e, entretanto, é supremamente feliz. Frágil e quase um indigente, porém, está redimindo o mundo inteiro. Não está ainda na plenitude do uso de seus NATV_1sentidos, mas regala-se no gozo da visão beatífica. Tudo isso “porque Deus amou de tal modo o mundo, que lhe deu seu Filho Unigênito, para que todo aquele que n’Ele crer não pereça mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16).

III – ADOREMOS AQUELE QUE NOS AMOU E REDIMIU

Nessa bem-aventurada noite, ao nos depararmos com um Menino e Deus ao mesmo tempo, ternura e veneração se unem em nossas almas num ato de adoração Àquele que nos criou e nos redimiu. A consideração da grandeza dadivosa desse amor divino que assume as insuficiências de nossa natureza, predispondo-se a tudo sofrer, sacrificando- se até a morte de cruz pelo desejo de nos fazer bem, arranca de nós – apesar de nossa maldade – os maiores atos de gratidão e de reciprocidade. Aquela criança indefesa crescerá e, quando adulta, manifestará sua benquerença por todos, percorrendo praças e ruas das inúmeras cidades de seu país, curando os enfermos, restituindo o caminhar aos paralíticos, a voz aos mudos, a audição aos surdos, a vida aos cadáveres. Sempre se reportando ao Pai, sem jamais deixar de perdoar a quem quer que se arrependesse de seus pecados, doce e afável com seus discípulos, nunca saiu dos limites de sua pobreza e humildade.

IV – CONCLUSÃO

“João dá testemunho d’Ele e clama: ‘Este era aquele de Quem eu disse: O que há de vir depois de mim é mais do que eu, porque existia antes de mim. Todos nós participamos de sua plenitude, e recebemos graça sobre graça; porque a Lei foi dada por Moisés, mas a graça e a verdade foram trazidas por Jesus Cristo'” (vv. 15-17).

Com os olhos postos no Menino Jesus, e pela intercessão de Maria e José, agradeçamos os incontáveis benefícios descidos e infundidos sobre nós a partir daquela “Beata Nox”, e imploremos a graça da santidade. Assim, livres de todo pecado, passemos não só uma noite, mas uma Eternidade Feliz.

(Revista Arautos do Evangelho, Dezembro/2004, n. 36, p. 7 à 11)

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dez

Lux in tenebris lucet

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EVANGELHO:

1 Naqueles dias, saiu um edito de César Augusto, prescrevendo o recenseamento de toda a terra. 2 Este recenseamento foi anterior ao que se realizou quando Quirino era governador da Síria. 3 Iam todos recensear-se, cada um à sua cidade. 4 José foi também da Galiléia, da cidade de Nazaré, à Judéia, à cidade de Davi, que se chamava Belém, porque era da casa e família de Davi, 5 para se recensear juntamente com Maria, sua esposa, que estava grávida. 6 Ora, estando ali, aconteceu completarem-se os dias em que devia dar à luz, 7 e deu à luz o seu filho primogênito, e O enfaixou, e O reclinou numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria. 8 Naquela mesma região, havia uns pastores que velavam e faziam de noite a guarda ao seu rebanho. 9 Apareceu-lhes um anjo do Senhor e a glória do Senhor os envolveu com a sua luz e tiveram grande temor. 10 Porém, o anjo disse-lhes: “Não temais, porque vos anuncio uma boa nova, que será de grande alegria para todo o povo: 11 Nasceu-vos hoje na cidade de Davi um Salvador, que é o Cristo, o Senhor. 12 Eis o que vos servirá de sinal: Encontrareis um Menino envolto em panos e deitado numa manjedoura”. 13 E subitamente apareceu com o anjo uma multidão da milícia celeste louvando a Deus e dizendo: 14 Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na terra aos homens, objeto da boa vontade de Deus” (Lc 2, 1-14).

A mais fulgurante das luzes brilha nas trevas e oferece à humanidade a verdadeira paz, sobretudo em nossa era crivada de guerras, catástrofes e ameaças. Junto a Maria, a José e aos pastores, no Presépio, adoremos o Menino-Deus, o Príncipe da Paz.

MONS JOAO CLA_3Mons. João Clá Dias, EP

I – Cristo, o centro da História

Vivemos no ano de 2006 e ninguém levanta a menor dúvida a este propósito, pois assim foi estabelecido, por consenso universal, o critério para elaborar o nosso calendário. Só esse fato seria, de si, suficiente para comprovar que há dois milênios e seis anos, numa gruta em Belém, nasceu o Menino-Deus com a missão de salvar o mundo. Essa é uma das provas da grande importância que todos os povos, crentes ou não-crentes, atribuíram ao acontecimento que acabou por dividir a História em dois grandes períodos: antes e depois de Cristo. Não tardaram muitos séculos para que urbi et orbe, três vezes ao dia, os sinos das igrejas ecoassem a fim de recordar e alçar seus louvores aos Céus pela Encarnação do Verbo; o Ângelus passou a ser uma devoção universal. A emoção e o júbilo pervadiram a terra e, ao longo dos tempos, na celebração do Natal, sempre ressoaram os cantos litúrgicos e as canções destinadas a manifestar a mesma alegria de há mais de vinte séculos: “Hodie Christus natus est” (1).

“Uma luz resplandece nas trevas” (Jo 1, 5): “Christus natus est nobis“, foi para nós que Ele nasceu, para a humanidade de todas as épocas, até o Juízo Final. O glorioso nascimento do Menino Jesus constitui uma inesgotável fonte de salvação. E, invariavelmente – sobretudo neste ano tão atravessado por ameaças de guerras, convulsões e terrores – o convite que nesta festividade é feito aos homens vem carregado de promessas. Junto ao Divino Infante pode-se encontrar a verdadeira paz, como ocorreu com os pastores e os Reis Magos. Movidos por um sopro do Espírito Santo, abandonaram seus afazeres e puseramse a caminho em busca da Paz Absoluta, para adorá-La. Esse mesmo convite nos é dirigido a nós na noite de hoje: “Venite adoremus”, pois “a graça de Deus, nosso Salvador, apareceu a todos os homens. (…) Manifestou-se a bondade de Deus nosso Salvador e o seu amor pelos homens” (Tt 2, 11; 3, 4).

II – Viagem de José e Maria a Belém

O recenseamento

1 Naqueles dias, saiu um edito de César Augusto, prescrevendo o recenseamento de toda a terra. 2 Este recenseamento foi anterior ao que se realizou quando Quirino era governador da Síria. 3 Iam todos recensear-se, cada um à sua cidade.

Não há uma só palavra ou um só gesto relacionado com a vida de Jesus que não contenha vários e altíssimos basilica da Natividadesignificados. Por isso multiplicam- se ao longo dos séculos comentários e interpretações sobre as narrativas evangélicas. Neste primeiro versículo encontramos um exemplo interessante sobre esse particular.

São Tomás de Aquino, por exemplo, assim se manifesta:

Cristo veio para nos reconduzir do estado de escravidão ao estado de liberdade. Por isso diz Beda que, assim como assumiu nossa condição mortal para nos conduzir à vida, assim ‘dignou- Se encarnar num tempo em que, apenas nascido, seria registrado no censo de César, e, por nossa libertação, se submeteu Ele mesmo à escravidão'” (2).

Além dos aspectos teológicos relacionados com o recenseamento, podemos considerar razões concretas, de ordem geográfica e sociológica, que tornam mais clara a providencialidade da escolha da época para nascer o Messias.

Naquele tempo, o local de nascimento do fundador da estirpe era de fundamental importância para se determinar as origens de uma família. Mesmo após ter-se desdobrado em inúmeros ramos que iam estabelecer-se em outros lugares, às vezes longínquos, essas novas colméias humanas guardavam um estreito relacionamento com suas nascentes geográficas. Esse costume era sobremaneira observado pelo povo judeu, e dele se serviram os romanos para fazerem cumprir o edito de César Augusto, a fim de levar a cabo um exato recenseamento do povo. Daí o fato de José ver-se na contingência de apresentar-se diante das autoridades, na “cidade de Davi, que se chamava Belém”. Por isso, a Sagrada Família deveria empreender uma viagem de três ou quatro dias, de Nazaré a Belém (cerca de 140 km), tempo gasto pelas caravanas da época. Aliás, Belém ficava no carrefour das rotas de caravanas com destino ao Egito, sendo um lugar de repouso dos viajantes.

Por que Maria fez a viagem com José

4 José foi também da Galiléia, da cidade de Nazaré, à Judéia, à cidade de Davi, que se chamava Belém, porque era da casa e família de Davi, 5 para se recensear juntamente com Maria, sua esposa, que estava grávida.

O fato de São Lucas mencionar o estado de gravidez no qual se encontrava Maria Santíssima propicia comentários e hipóteses. Como só José tinha a obrigação de apresentar-se em Belém, por que também Maria teria empreendido essa viagem na companhia dele?

Segundo alguns autores, talvez ambos tivessem planejado sua definitiva mudança para a cidade-berço da estirpe do Rei Profeta. Tanto mais que, na Anunciação feita por São Gabriel, constava que Deus daria ao Menino o trono de seu pai Davi.

Além disso – argumentam esses autores – havia vários séculos, o profeta Miquéias fizera referência à cidade de Belém como o local de procedência d’Aquele que governaria o povo judeu (cf. Mq 5,1).

Por outro lado, é também possível que José não quisesse deixar Maria a sós naquelas circunstâncias, sobretudo se considerarmos a grande santidade desse varão que seria o pai legal e tutor do Filho de Deus. José, certamente, queria adorá-Lo o quanto antes e logo no primeiro instante.

Quiçá todas as hipóteses se conjuguem e tenham cabimento. Seja como for, o deslocamento deve ter sido muito fatigante para a Santíssima Virgem, já tão próxima dos últimos momentos da gestação. Os caminhos, além de tortuosos e mal-acabados, estavam ingurgitados pelo fluxo do trânsito dos convocados pelo recenseamento. Asnos e camelos circulavam num e noutro sentido em número acima do costumeiro. Além disso, Belém se situa 10 km ao sul de Jerusalém, a mais de 700 metros de altitude sobre o Mediterrâneo e a quase 1200 metros acima do nível do Mar Morto; portanto, uma e outra cidade se encontram em altitudes bem semelhantes. Era a última região habitável rumo ao Mar Morto. Assim, íngremes foram os derradeiros trechos de estrada percorridos para chegar em Jerusalém e pernoitarem em Belém.

Talvez se julgue que, pela imensa consolação de se tornar mãe daí a pouco, não sentisse a Santíssima Virgem as agruras de tão penoso percurso. Mas até isso Lhe foi exigido, para tornar mais meritória sua participação na obra redentora de seu Divino Filho. E a esse incômodo, outro mais se acrescentaria: os “hotéis” daqueles tempos. As condições de hospedagem nem de longe se assemelhavam às de hoje, sob os mais variados aspectos. Os viajantes ocupavam divisões contíguas, debaixo de caramanchões – sem teto, portanto – ou, os que possuíam mais recursos, cubículos cobepastores_1rtos. Estes e aqueles se localizavam ao longo de um muro alto que cercava um pátio amplo, no qual os hóspedes deixavam os respectivos animais. Uma única porta dava acesso ao interior da hospedagem. Nas noites de superlotação, não era raro encontrar pessoas acampadas nesse pátio. Tal convívio entre homens, em meio aos animais, era alimentado por comes e bebes, alegrado por cantorias, falatórios e até mesmo discussões. Não era alheio a esse ambiente um indescritível prosaísmo, comum naqueles tempos.

Em nada era estranha aos judeus a agitação que se criou por ocasião do recenseamento, pois o ambiente era o mesmo ao longo das celebrações da Páscoa. Ainda não havia o recato que o Preciosíssimo Sangue do Redentor introduziu depois na Civilização Cristã. Tudo se fazia sem reservas: ali se podia nascer ou morrer, adoecer ou curar-se, dormir ou agitar-se, etc., à vista de todos. Esse é o verdadeiro sentido da afirmação de São Lucas: “porque não havia lugar para eles na hospedaria”. Não tanto porque esta estivesse lotada, mas por não Lhes ser adequada.

Belém, a cidade escolhida

E por que Belém?

O nome da cidade é de origem hebraica: “Bet-lehem“, ou seja, “casa do pão”, porque essa localidade era muito fértil. Quem, misticamente, cantou as glórias de Belém foi Santa Paula, no ano de 383: “Saúdo-te, ó Belém, casa do pão, onde o pão descido do Céu viu a luz da terra! Saúdo-te, ó Efratá, campo riquíssimo e fértil, que entre os teus frutos trouxeste o próprio Deus!” (3).

São Tomás de Aquino nos ensina algumas das razões pelas quais Jesus escolheu Belém para nascer e Jerusalém para morrer:

“Davi nasceu em Belém, mas escolheu Jerusalém para estabelecer nela a sede de seu Reino e ali edificar o templo de Deus.

Assim, Jerusalém viria a ser ao mesmo tempo a cidade real e sacerdotal. Mas o sacerdócio de Cristo e o seu reino se realizariam principalmente em sua Paixão. Por isso era conveniente que, para nascer, escolhesse Belém, e para a Paixão, Jerusalém. (…)

“Como diz São Gregório, Belém quer dizer ‘casa do pão’. E o próprio Cristo afirma: ‘Eu sou o pão vivo, que desceu do Céu’. (…) Além disso, contrariava a vanglória dos homens que se orgulham de ter nascido em cidades famosas, nas quais querem principalmente ser honrados. Cristo, pelo contrário, quis nascer numa cidade obscura e padecer opróbrios numa cidade famosa” (4).

Historicamente, Belém tem um passado rico em densidade e simbologia. Ali foi enterrada Raquel, esposa de Jacó (cf. Gn 35, 16-19), e até hoje se pode visitar seu túmulo. Na divisão do território de Israel, efetuada por Josué, Belém coube à tribo de Judá, na qual nasceu Davi. Porém, depois do nascimento de Jesus, ela se eclipsa. Os Evangelhos não mais a mencionam, e, assim, ela fica com os resplendores dos primeiros olhares do Salvador, logo ao vir a este mundo. Só no século II, São Justino e Orígenes, além de alguns outros escritores, fazem reviver as glórias dessa cidade.

III – Nasce o Salvador

História da Gruta

6 Ora, estando ali, aconteceu completarem-se os dias em que devia dar à luz, 7 e deu à luz o seu filho primogênito, e O enfaixou, e O reclinou numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria.

Como o próprio São Lucas declara, “não havia lugar para eles na hospedaria“, ou seja, José viajou a Belém na esperança de encontrar uma hospedagem à altura do grande acontecimento que ali se passaria. A Beata Ana Catarina Emmerick descreve com piedosa riqueza as várias e frustradas tentativas de José, no reencontro com suas antigas amizades, de achar um local para ali repousarem. Depois de lhe rolarem amargas lágrimas pelo rosto, lembrou-se de um refúgio distante da cidade, freqüentado por ele mesmo em sua juventude para escapar de seus perseguidores e aproveitar para rezar. Após propor à Santíssima Virgem essa solução, para lá se dirigiram. Segundo a vidente – que descreve em minúcias tanto o exterior quanto o interior da Gruta -, ali nascera Set, terceiro filho de Adão, o qual, de acordo com a promessa de um Anjo a Eva, tomaria o lugar de Abel. Outros fatos simbólicos, relacionados com Abraão, também haviam se passado nesse mesmo lugar.

Por fim, já bem instalados, Maria sbasilca de Santa Maria Maggioreugeriu a José rezarem juntos por todos aqueles que haviam se negado a recebê-los, e lhe comunicou a hora do nascimento, pedindo-lhe que preparasse bem a manjedoura para poder honrar e adorar o Menino, tão logo Ele entrasse neste mundo.

O Céu se uniu à terra

Depois de alguns instantes, passados fora, José retornou à Gruta, encontrando- a como que em chamas, de tanta luz. Imediatamente prostrou- se com o rosto em terra. Essa luz que envolvia a Santíssima Virgem foi crescendo de intensidade e, à meia-noite, após Ela entrar em êxtase e levitação, e estando a própria natureza dos arredores como que em grande júbilo, nasceu o Salvador. Ao ter-Se movido o Menino, fazendo ouvir seus primeiros vagidos, Maria “envolveu-O em panos e recostou- O no Presépio”. Os céus desceram à terra para adorá-Lo, enquanto a Virgem, resguardando-O em seu amplo manto, O amamentava. Passada uma hora, Maria chamou José, o qual ainda estava prosternado em oração. Júbilo, humildade e fervor, são as qualidades com que a vidente Ana Catarina descreve o estado de alma de José, ao receber o Menino nos braços, banhando-se em lágrimas de alegria. O recém-nascido era “brilhante como um relâmpago”, segundo sua expressão.

A esta altura do presente artigo, vem-me o ardente desejo – talvez por neste momento eu me encontrar numa capela, bem próximo de Jesus- Hóstia, exposto à adoração – de dirigir às almas que lêem este relato o que São Paulo implora ao Pai, para os Efésios: “Que Cristo [Menino] habite pela fé em vossos corações, arraigados e consolidados na caridade, a fim de que possais, com todos os cristãos, compreender qual seja a largura, o comprimento, a altura e a profundidade, isto é, conhecer a caridade de Cristo, que desafia todo o conhecimento, e sejais cheios de toda a plenitude de Deus” (Ef 3, 17-19).

O Natal na Liturgia

Assistimos liturgicamente, nesta noite, ao nascimento de Cristo, que se deu no tempo, pois, por sua natureza divina, já fora gerado desde toda a eternidade, como afirma São Tomás de Aquino: “Cristo tem duas naturezas: a divina e a humana. A primeira, recebeu- a do Pai desde toda a eternidade; e a outra, recebeu-a da Mãe, no tempo. É, pois, necessário atribuir a Cristo dois nascimentos: o do Pai, desde a eternidade, e o da Mãe, no tempo” (5).

“E o Verbo Se fez carne …” (Jo 1, 14). A Segunda Pessoa da Santíssima Trindade está entre nós. Esse acontecimento único e insuperável refulge em toda a História e, apesar de terse dado há mais de dois mil anos, é atualíssimo. Deus quis fazer-Se sensível e visível e, ainda hoje, como se dará até o fim dos tempos, podemos ter contato com esses esplendores da Encarnação através dos Sacramentos. Diariamente, sobre os nossos altares, o Verbo Se faz carne. Por essa razão, a Missa do Galo, para nós, tem um significado todo especial. Que o Espírito Santo nos abrase o coração para aproveitarmos todas as graças e dons trazidos pelo Menino-Deus, em sua vinda à luz, nesta noite.

IV – Adoração dos pastores

8 Naquela mesma região, havia uns pastores que velavam e faziam de noite a guarda ao seu rebanho. 9 Apareceu-lhes um anjo do Senhor e a glória do Senhor os envolveu com a sua luz e tiveram grande temor.

Também Davi havia sido pastor de ovelhas, e naquela gruta estavam três de seus descendentes, sendo um deles o Filho do Altíssimo. A corte celeste já rendera culto e homenagem ao Menino. Nascido com nossa natureza, digno e justo era que também de nossa sociedade recebesse Ele adoração.

Uma categoria social desprezada

Os pastores constituíam uma comunidade desprezada pelos fariseus. No caso concreto de Belém, trbalhavam eles nos confins da região, onde o cultivo das plantações já não interessava e as terras estavam abandonadas e incultas. Ali permaneciam os rebanhos mais numerosos, fosse inverno ou verão, vigiados por alguns homens. Os habitantes do povoado guardavam seus animais nos estábulos dos arredores. A péssima reputação dos pastores entre os fariseus provinha de várias razões. Percebese, de imediato, que as funções por eles exercidas não se coadunavam muito com as inúmeras abluções, lavar de mãos, purificação de vasilhas, seleção de alimentos, etc., às quais os fariseus davam tanta importância. Mas, sobretudo, eram eles homens de bom senso e mais dados à contemplação. O contato permanente com a natureza saída das mãos de Deus, na calma e tranqüilidade do isolamento do campo, lhes enriquecia a alma de pensamentos elevados, conduzindoos à elaboração de critérios sólidos, difíceis de serem destruídos pela ilogicidade caprichosa dos fariseus.

Eis, em poucas palavras, os motivos pelos quais os pastores eram excluídos dos pleitos judiciais dos fariseus, não eram aceitos como testemunhas, e nem sequer podiam entrar em seus tribunais.

Separando dos incrédulos os que têm fé

Assim, já ao nascer, o Menino-Deus iniciou sua missão de pedra de escândalo, deixando de lado os que não crêem. Herodes ouviria dos lábios dos Reis Magos o anúncio do grande milagre; aqueles que recusaram pousada aos pais do Menino, e os próprios fariseus, com sua pérfida pertinácia, também rejeitariam os milagres de Jesus. Todos esses não creram. Os Anjos buscaram os pastores por terem estes uma robusta virtude da fé, toda feita de obediência. Não era fácil crer num Messias nascido em plena pobreza, num estábulo, entre um boi e um burro. Os pastores, entretanto, foram escolhidos por Deus, não por sua simplicidade de vida e de costumes, nem sequer pela sua pouca capacidade financeira – pois muitos outros havia em Israel mais pobres e simples do que eles -, mas porque estavam predispostos a crer.

O temor da grandepastores_2za de Deus

Sem embargo, os pastores “tiveram grande temor”. Herodes também temeria, da mesma forma que, mais tarde, os escribas, os fariseus e o Sinédrio. São muito diferentes todos esses temores. A aparição de um Anjo, para os judeus, vinha sempre acompanhada da idéia de perecimento imediato. Mas neste caso, além do mais, dava-se a manifestação da glória de Deus, e o natural efeito de sua grandeza é o temor, seguido de admiração ou de ódio, nunca de indiferença.
Por isso uns irão correndo à Gruta para adorá-Lo e outros quererão matá-Lo.

10 Porém, o anjo disse-lhes: “Não temais, porque vos anuncio uma boa nova, que será de grande alegria para todo o povo: 11 Nasceu-vos hoje na cidade de Davi um Salvador, que é o Cristo, o Senhor. 12 Eis o que vos servirá de sinal: Encontrareis um Menino envolto em panos e deitado numa manjedoura”.

O anúncio do Anjo se inicia por uma determinação: “Não temais!” Estas palavras evidentemente diziam respeito à sua própria aparição, mas bem poderiam constituir um letreiro a ser colocado sobre a manjedoura onde repousa o Menino-Deus. Sim, porque, apesar da fragilidade de um recém-nascido, ali se encontram a Grandeza infinita de Deus, a Verdade, a Justiça e a Bondade. Por nossa natureza defectiva e por sermos pecadores, temos medo da Justiça e, assim como a luz muito brilhante pode ferir os olhos enfermos, treme nossa maldade diante da Grandeza de Deus.

Daí ter o Anjo recomendado com tom imperativo que não temessem, e logo a seguir lhes falado de uma “grande alegria”. De fato, impossível alegria maior. Aquele Messias que tanto fora objeto de suas longas conversas, como também de suas inúmeras contemplações, havia nascido. Apesar de sua formação tosca, estavam os pastores isentos do dogmatismo obliterado dos fariseus; com a fé inocente de camponeses que eram, cheios da graça do Espírito Santo, imediatamente acreditaram na angélica mensagem.

Encontrarem o local não constituía problema para eles, pois todos os estábulos já lhes eram muito conhecidos. Nas noites de muito frio, ou chuva, buscavam refúgio nessa ou naquela gruta. O Anjo lhes dá o sinal indicativo: “Um Menino envolto em panos e deitado numa manjedoura”.

V – O cântico dos anjos

13 E subitamente apareceu com o anjo uma multidão da milícia celeste louvando a Deus e dizendo: 14 “Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na terra aos homens, objecto da boa vontade de Deus “.

Fixemos nossa atenção nestas palavras: “multidão da milícia celeste (…) glória a Deus“.

Glória a Deus nas alturas…

Sim, a maior glória que a humanidade e os próprios Céus poderiam dar a Deus realizou-se no grandioso nascimento do Senhor. Toda a criação – nela incluída a Santíssima Virgem – reunida num só coro, jamais prestaria a Deus o louvor que se elevou do Menino Jesus em seu nascimento. Antes de este ter-se dado, os cânticos de todos os seres eram débeis e sem eco. Com a vinda de Cristo, causa meritória e eficiente de nossa divinização, toda a obra da criação atingiu um patamar inimaginável. E tornando-Se Jesus centro e modelo, não apenas o cântico passou a ser outro, como Ele também começou a cooperar na infinita glorificação que o Pai deseja Lhe seja tributada. A humanidade adquiriu como cabeça e sacerdote o próprio Cristo, que só por seu nome dMenino Jesus arautosá toda glória a Deus.

Aquele Menino na manjedoura, desde seu primeiro momento e ao longo de sua vida, em suas palavras, obras e sofrimentos, nada quis mais do que ser instrumento para servir, louvar e glorificar a Deus.

Tanto mais nobre será o homem, quanto mais se considerar criatura de Deus e deste princípio tirar todas as conseqüências, conferindo à sua vida uma inteira ordenação. Daí nascerão as mais belas virtudes. Ora, vindo esta noite ao mundo, o Menino, desde seu abrir de olhos, sempre foi submisso a Deus, na completa justiça, eqüidade e perfeição.

Até mesmo sem levar em conta o caráter expiatório de sua Encarnação, já é insuperável a glória que se elevou a Deus, partindo daquela gruta em Belém.

Paz na terra…

Em harmonia com essa “Glória a Deus nas alturas”, o Menino veio trazer a paz aos homens. Sim, Ele nos reconciliou com Deus, ensinou-nos a bem conhecer e amar o Pai, assim como nossos irmãos, e, morrendo por todos e cada um, convidou-nos à santidade. O nosso fim último tornou-se claramente explícito, como também ficou indicado qual deve ser o nosso governo sobre nós mesmos e sobre as criaturas.

Mais uma vez, aproximemo-nos do Presépio e adoremos o Menino, Príncipe da Paz, e ouçamos a voz de Isaías: “Como são belos sobre as montanhas os pés do mensageiro que anuncia a felicidade, que traz as boas novas e anuncia a libertação, que diz a Sião: Teu Deus reina!” (Is 52,7). Ele, o autor da graça santificante, sem a qual “não pode haver verdadeira paz, mas somente uma paz aparente” (6).

Eis o convite essencial para o mundo de hoje tomado pelas guerras, catástrofes e ameaças: ajoelhe-se e, juntamente com Maria, José e os pastores, ouça a saudação de São Paulo: “O Senhor da paz, Ele próprio, vos dê a paz, sempre e em todos os lugares” (2 Ts 3, 16).²

1) Hoje nasceu Cristo.
2) Suma Teológica III, q. 35, a. 8, ad 1.
3) Cf. Epitaph Paulae [inter Epist. S.
Hieron., 108, 27] 10. Efratá significa fértil.
4) Suma Teológica III, q. 35, a.7, ad 1.
5) Suma Teologica III, q. 35 a. 2c.
6) São Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 29, a. 3, ad. 1.

(Revista Arautos do Evangelho, Dez/2006, n. 60, p. 10 à 17)


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